segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Ido

Pobre mulher... Nas suas “muito bem aproveitadas”, como não se cansava de gabar a quem perguntasse, mais de cinco décadas de vida, acordou livre. “Que coisa mais estranha!”, pensou. Na noite passada, havia feito tudo exatamente igual, como nos últimos 28 anos, um beijo sem nada muito forte, exceto o sabor do creme dental que se comprometia com um mágico clareamento inalcançavelmente notado, algumas observações sobre o que faltava na dispensa (ou talvez sobre a conta de energia), um silêncio confortante e, logo em seguida, um ronco conhecido. Tu-do e-xa-ta-men-te i-gual!

Fechou os olhos, tola que tentava ser, dormiria mais um pouco e acordaria como sempre. Já comentei sobre sua ingenuidade forçada, não foi? Não conseguiu dormir, muito menos mudar aquilo. “Como poderia ser tão fria assim?”, culpou-se. Arrepiou-se só em pensar em tamanha ingratidão. Quanto egoísmo! Desistir de algo que não era só seu... que, na verdade, nem era mais seu. 

Naquele momento, sentiu o farfalhar do colchão, uma alteração de respiração e de posição e uma nova entonação de ronco. Aquele barulho, já tão gasto e familiar, nem sempre foi tão aceitável, quantas noites de fugas para o sofá ou cotoveladas nas costelas. Perdeu-se em algumas dessas madrugadas, seguidas por dias de amor no banho e atraso para o trabalho. Com certo rubor, pensou em como as coisas já tinham sido bem quentes. Ainda assim, não conseguiu mudar nada.

Sentia um fim indescritível, irreparável, inadiável. Aspirou toda a coragem que coube em seus pulmões, ficando até um pouco tonta, e o olhou mais uma vez, aquela seria a última vez que dividiriam aquela cama, aquele quarto, aquela vida. Mais uma remexida, dessa vez apenas as pernas, será que ele já previa? O que aconteceria? Seria ele quem abandonaria as paredes da casa comprada há quase três décadas? E o jogo de porcelana, presente de sua avó, ele o reclamaria?

Outra virada sobre o colchão, agora ele acordaria. E assim foi. Olhou-a com olhos fechados, ela sempre acreditou que esse fosse algum poder mágico e peculiar seu, laçou-a pela cintura com braços frouxos, aquela era uma forma particular de desejar um bom dia, e saiu em direção ao banheiro. Como ela tinha se retorcido por mais naquela manhã. Um beijo, sem gosto de hortelã, um sonho bobo dividido, um “bom dia” de verdade. Não houve nenhum barulho, nenhum pedido, nenhuma declaração e não haveria nada se não fosse pela descarga do vaso. “Tá vazando de novo!”, foram as primeiras palavras do dia. “Vazando?”, repetiu sem dizer nada de fato. “E quanto a mim?”, pensando alto dessa vez. Calou-se. O chuveiro já havia sido ligado e mais do que apenas a água ia pelo ralo naquele instante. Tinha sido assim também ontem. E anteontem. E antes disso. 

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