sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O combate à violência contra mulher passa por todos os espaços

Como herança da colonização europeia, pautada no patriarcado e no racismo, nossa socialização sempre manteve a mulher num patamar de inferioridade em relação ao homem. E isso foi ainda mais cruel com mulheres não-brancas. Diferentemente da visão em que mulheres brancas eram “minimizadas”, dentro de conceitos de feminilidade, de fragilidade e de delicadeza, as mulheres não-brancas, fossem negras ou indígenas, eram tratadas de forma "animalizadas", exploradas sexual e fisicamente em níveis bárbaros - sem construir qualquer expectativa social de proteção para essas mulheres. As mulheres escravizadas trabalhavam e eram castigadas tão duramente quantos os homens, até mesmo durante a gestação ou logo após o parto.

Nessa construção sexista, que influencia na nossa pisquê até os dias atuais, há uma falsa crença numa superioridade intelectual, física, biológica e psíquica dos homens em comparação a mulheres - o que assegura padrões de violência de gênero que encaramos como aceitáveis dentro das nossas relações familiares e sociais e que ultrapassam raça, etnia, classe social, religião e orientação sexual. 

Dados e números apontam os riscos do machismo para vidas de mulheres

O Brasil é o 4º país em números absolutos com mais casamentos infantis no mundo. Até 2019, era permitido por lei o casamento com menores de 16 anos. Outra situação absurda quanto ao casamento com crianças é que, para evitar cumprimento de pena criminal (já que ter relações sexuais com menores de 14 anos é crime), foi previsto em lei até 2005 que o estuprador de vulnerável poderia se casar com a vítima para não ser preso. Indícios que evidenciam que a mulher/menina construída socialmente como vulnerável e dependente (financeira ou afetivamente) é o alvo perfeito para a dominação e agressividade estimuladas na formação do homem como a gente vivencia. 

O Brasil ocupa o 5º lugar num ranking mundial de feminicídio  –  que é quando o assassinato contra a mulher é motivado por desprezo ou ódio à sua condição de mulher. É mulher morrendo porque terminou um relacionamento, ou porque desistiu de fazer sexo, ou porque precisou  cobrar pensão alimentícia para os filhos, ou porque o cara não quis assumir o filho, ou porque o pai achou que ela "desonrou" a família. Estes são exemplos de como as mulheres são, socialmente, as mais vulneráveis nas relação afetivas e familiares. Em 2019, o país bateu recorde e chegou à média de um feminicídio acontecendo no país a cada 7 horas. 

Mas, antes da morte, a violência se faz por meio de agressões. Também em 2019, a cada quatro minutos, foi registrada uma mulher sendo agredida por um homem no contexto de violência de gênero - 61% dessas mulheres são negras e quase 71% estudaram, no máximo, até o ensino fundamental. Mulheres pobres e pretas lidam com uma invisibilidade muito maior das suas necessidades, até mesmo de sobrevivência, na nossa estrutura. Uma análise feita com dados coletados de 2003 a 2013 apontou que o número de mulheres negras assassinadas em função da condição de gênero cresceu 54%, enquanto o índice de mulheres brancas assassinadas nas mesmas condições caiu 10%. 

Lei Maria da Penha 

Reconhecendo essas deturpações sociais, políticas públicas e leis são criadas para assegurar que o país seja um lugar justo e seguro para as brasileiras - inclusive dentro de casa. Conhecida como Lei Maria da Penha, a Lei 11.340/06 foi sancionada em 2006 e "cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher". A medida legal trata especificamente de violência de gênero cometido por familiares, parentes, agregados ou pessoas com quem a vítima mantenha ou já tenha mantido alguma relação - hétero ou homoafetiva. Qualquer violência contra mulher deve ser denunciada e registada ocorrência junto à polícia - e é importante saber que qualquer pessoa pode fazer a denúncia, não apenas a vítima ou alguém próximo a ela.

A Lei Maria da Penha definiu cinco tipos de violações contra as mulheres - física, sexual, psicológica, moral e patrimonial - e as medidas protetivas de urgência, como, por exemplo, as imposições ao agressor do afastamento do local de convivência e proibição de aproximação da vítima, prestação de pensão alimentícia, suspensão da posse ou restrição do porte/posse de armas. A Lei determina também que a vítima somente poderá renunciar à denúncia perante o juiz, impossibilitando, assim, ainda que haja coação ou desencorajamento. Além disso, foram estabelecidas criações dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e definidas alterações no Código de Processo Penal, Código Penal e na Lei de Execução Penal, em busca de agilizar o trâmite legal e garantir proteção à mulher.

A Lei Maria da Penha não é garantia de mágica para a situação de violência contra mulher, mas é um recurso que, quando usado como disposto em lei, tenta minimizar os danos dessa nossa cultura. Em caso de dúvida ou denúncias, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência - Ligue 180, funciona 24 horas, todos os dias da semana, inclusive finais de semana e feriados, e pode ser acionada de qualquer lugar do Brasil de forma gratuita.

*A Lei do Feminicídio (Lei 13.104/15) só entrou em vigor em março de 2015 e qualifica os assassinatos de mulheres por serem mulheres. A Lei considera feminicídio quando o assassinato envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima.

Quem é Maria da Penha?

Maria da Penha Maia Fernandes é uma farmacêutica cearense e mais uma vítima do fenômeno estrutural que é a violência doméstica contra mulheres no nosso país. Ela ficou paraplégica, em 1983, depois de levar um tiro de espingarda seu marido. Ainda foi mantida em cárcere privado, sofreu outras agressões e uma nova tentativa de assassinato - desta última vez, o, então, marido tentou eletrocutá-la. O Brasil falhava com Maria da Penha, e o agressor se beneficiava do descaso do Estado. A história de que "não se deve meter a colher em briga de marido e mulher" também parecia atingir o Judiciário brasileiro. Assim, a vítima recorreu a instituições internacionais, e o seu caso só foi solucionado em 2001, quando nosso país foi condenado por omissão e negligência pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos e teve que se comprometer em reformular suas leis e políticas em relação à violência doméstica. Em 7 de agosto de 2006, foi sancionada a lei que leva o nome da farmacêutica, que, atualmente, é líder de movimentos de defesa dos direitos das mulheres.