terça-feira, 23 de agosto de 2011

Alerta*

Ela sabia que iria se atrasar.

- Ah, e daí? – pensou em voz alta, com certa presunção e preguiça.

O mundo não iria parar, guerras não iriam eclodir, nada seria alterado na ordem do Universo, se ela continuasse mais alguns minutos na cama. Fechou os olhos e, quase que imediatamente, voltou a dormir.

Acordou atrasada e com dois problemas adicionais: estava muito enjoada, com uma espécie de azia que lhe causava embrulhos no estômago, e não conseguia encontrar nada para vestir, a maioria das peças insistia em ressaltar o que a academia não conseguia dar fim ou acrescentar. Ela quis chorar, quis muito. Só que, percebeu pelo espelho, já havia se maquiado e resolveu não arriscar. Não estava a fim de testar se o rímel era mesmo a prova d’água.

Como queria não ser obrigada a ver ninguém, a solidão lhe cairia tão bem aquele dia… Nada de palavras, nada de inconveniências (porque parecia que ninguém tinha nada de útil a ser dito, mas mesmo assim, todos insistiam em soltar algo).

Ela até tentou se manter isolada, mas a sua rotina exigia, no mínimo, sociabilidade. Viu-se integrando alguns grupinhos de conversas e sempre acabava tendo a impressão de que todos queriam de alguma maneira, atingi-la.

- Meu noivo está terminando o curso de medicina. Mas não gosta muito de sangue e cirurgias…

- Ele faz medicina e não gosta de sangue? – perguntou cética.

- É… É o jeitinho dele! Por isso ele resolveu se especializar em cardiologia.

- Ah, é? E como ele vai cuidar de corações, sem intervenção cirúrgica? Ele é Hitch? Porque até aonde eu saiba, Hitch é o único que trata de coração sem utilizar o bisturi!

Alguns sorriram, mas o clima de tensão no ar era quase palpável. Talvez pela estridência no timbre da sua voz ou pelo modo desafiador-irônico como formulou a indagação.

Saiu. Disposta a se concentrar só no trabalho, iria evitar situações de descontrole como aquela. Só que o telefone não parava de tocar, formulários não paravam de chegar e seu stress tornava-se cada vez mais visível. Das respostas curtas e diretas até os gritos, não demorava muito, bastava uma mesma pergunta ser feita de mais uma vez.

Tentou relaxar acessando a caixa de e-mail, mas a quantidade de desastres praguejados contra seu sucesso, a quantidade de mulheres mal-amadas dando dicas sobre traições e afins, os milhões de piadas ofensivas e pornográficas (provavelmente criadas por garotos na puberdade com os primeiros fios de pêlos surgindo no buço) e o número de correntes para crianças com doenças contraídas no Photoshop, acabaram agravando seu mal-humor. Como as pessoas conseguiam ser tão ridículas?

E aproveitando a deixa sobre pessoas ridículas, deu uma espiadela na mesa ao lado. Percebeu o “Big Brother”, ao telefone, com um sorriso de canto de boca e rápidos desvios de visão direcionados a ela. Aquela criatura buscava ascensão, levando ao conhecimento da chefia qualquer deslize cometido pelos outros. Ela começou a permitir que seus devaneios se manifestassem, e se viu, num acesso de fúria e gargalhadas, em um dos corredores da empresa, pousada sobre o abdômen daquele ser, chegando a sentir a temperatura quente do jorro de seu sangue e os pedaços de sua carne entre suas unhas, enquanto suas mãos vasculhavam por dentro do seu corpo em busca daquele perverso coração, se é que ele realmente possuísse um. Sentia-se faminta por sangue, mas somente por aquele sangue venenoso. Seria como o Conde Drácula, aquele de verdade, que viveu na Transilvânia e que tinha exacerbados requintes de crueldade.

Havia sido um dia stressante. Tudo no mundo conseguia irritá-la. E os resultados? Palavras ríspidas, atitudes hostis, olhares fuzilantes, carregador do celular quebrado (de uma forma que o próprio Capitão Nascimento se intimidaria), discussões ferozes e lágrimas, muitas lágrimas, fossem por ódio ou insegurança.

Apesar do disfarce, com muita base e óculos escuros, seus olhos estavam inchados, e ainda por cima, tinha descoberto que (em seus próprios adjetivos) “a porcaria do rímel não era droga nenhuma a prova d’água”, teve a sensação de que todas as pessoas a olhavam na rua e sua opinião oscilava entre: perguntar qual era o problema ou se esconder num buraco. Sentia raiva das cantadas baratas e cretinas (e de seus ministrantes idem), dos sorrisos dissimulados e apertos de mãos hipócritas, das cobranças vindas por todos os lados (inclusive, as faturas dos seus cartões de crédito).

Morrendo de dor de cabeça, todas as formas de desejos gritavam em seu corpo. Ela precisava de tudo e, mesmo em muita quantidade, ainda assim, não era o bastante. Queria compreensão, muita compreensão. Silêncio, muito silêncio. Açúcar, muito açúcar. Sexo, bem… Não fugia a regra.

Ele só ligou depois de quase uma desidratação. O que a dividiu. Por que ele havia demorado tanto? Não a queria mais ou estava saindo com alguém? (E uma coisa não excluiria a outra.) Por outro lado, precisava dele.

O celular já se encontrava visivelmente cansado em repetir a mesma melodia, até que, como um último suspiro, se aquietou. Ela se pôs em pé num salto, ele havia desistido. Quase que instantaneamente ela retornou a ligação.

- ACABA ASSIM, NÃO É ISSO? Eu só espero que você esteja certo disso, porque vai ser o fim mesmo! Para SEM-PRE!!!

Graças a Deus, ele percebeu. Escolheu meticulosamente cada palavra e, inclusive, a entonação que usaria em cada uma. Aquele não era o primeiro episódio desse tipo, não que ele já estivesse se acostumado ou as reações houvessem se tornado mais previsíveis, às vezes ainda sobrava para ele, só que agora ele sabia ser mais cauteloso. Eis os dias mais temidos no mês, a TPM…


*Republicação do site Revertério.com - 05 de agosto de 2010

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